Um advogado que, como eu, tem longos anos de experiência forense, dá-se conta de situações tidas como normais no meio jurídico, mas que, na realidade, são pelo menos questionáveis – para não dizer que embutem graves injustiças. No Direito Penal vigente no Brasil atual, o papel representado pelo Estado é quase sempre o de um protagonismo quase absoluto, ficando a vítima do delito relegada a uma posição secundária. Com exceção de casos de ação criminal privada, em todos os outros é sempre o Estado que atua, é ele que processa (por meio do Ministério Público), é ele que julga (por meio do Poder Judiciário) e é também ele que executa a sentença (por vários mecanismos administrativos).
Pela intelecção jurídica aplicada no Brasil, o Estado assume o papel de representante da vítima. Entende-se que, com o delito, foi à sociedade, acima de tudo, a lesada, e compete ao Estado tomar a defesa da coletividade atuando contra o delituoso. O resultado é que a vítima é colocada à margem do processo, no qual figura como uma tertia persona. Sem proteção, esquecida, não raras vezes até mesmo sem acesso a informações acerca do andamento do processo. E não é só isso. Há também outro aspecto que não pode ser ignorado: a dinâmica do processo judicial (e antes, o processo investigativo) impõe à vítima o verdadeiro tormento representado pelos depoimentos intermináveis e até altamente constrangedores. Há casos, por exemplo, de mulheres estupradas que são obrigadas a descrever diversas vezes, com pormenores, o drama pelo qual passaram, diante de outras pessoas e até de auditórios inteiros. Para elas, isso representa um sofrimento terrível, pois revivem, humilhantemente, o trauma pelo qual passaram.
No Direito Penal antigo as coisas se passavam de outro modo. As vítimas não eram esquecidas no processo penal, mas nele tinham voz e vez. Em outras palavras, podiam nele interferir, até mesmo em certos casos de modo decisivo. Por exemplo, as Ordenações Filipinas, instituídas pelo rei Felipe II de Portugal em 1603, estabeleciam numerosos casos de delitos em que uma sentença condenatória podia ser abrandada, e às vezes quase anulada, quando a vítima tomasse a iniciativa de perdoar o acusado(a) delituoso. Com isso, os laços comunitários e sociais que o delito rompera se restabeleciam.
Como advogado, penso que muito da inflexibilidade do Direito moderno lucraria se os legisladores de hoje olhassem para o passado com olhos menos preconceituosos. Afinal de contas, a sabedoria dos antigos ainda tem muita coisa a nos ensinar. E não só no campo do Direito…