Quando eu falo das minhas angústias, acredite: é uma vitória! E ninguém sabe – nem mesmo meu psicólogo, minha mãe, ou os amigos – o quão me doeu veemente o silêncio que hoje aprendo a amar. Antes fosse metáfora! Acontece que, ao bem da verdade, ao olhar com olhos ternos minha infância… Aquele que parecia ser “só” um menino tímido e calado… Tomava seus traços feito guerra na profundeza de um corpo franzino, acanhado e observador.
Eu não conseguia externalizar o quanto e como me sufocava ser quem eu era. Minha doçura escondia uma incapacidade de socializar e contar a intensa angústia de ser. Então, fui salvo pela criatividade. Brincar sozinho, e criar diálogos mudo, era brincar de verdade. Brincar com outras crianças era um desafio enorme que eu não sabia expressar o medo. Eu não me sentia olhado, e quando me olhavam, era para ressaltar as características que doíam. E que eu engolia sem entender porque ser do jeito que eu era, de algum modo, era sinônimo de fraqueza.
Deus sabe o quanto odiava tudo na escola. Eu sempre escolhia a fila de carteiras colada na parede próximo do colega mais quieto depois de mim. Eu não prestava atenção na aula, se não estava estranhando com uma sensibilidade de criança aquelas dinâmicas sociais, estava inventando histórias na minha cabeça. Não entendia as operações matemáticas, a ciência e a arte me encantavam, e no início as letras eram muitas. Tudo era muito. Muito confuso. Lembro da sensação de espanto quando descobri que o ser humano fazia parte do reino animal. Logo, até que fazia algum sentido aquela selvageria toda!
Na Educação Física eu era presa fácil. Essa maldita fazia eu perceber como a parede da sala de aula era minha amiga que me protegia. E lógico que, dos males o menor: eu preferia a invisibilidade da sala de aula onde “só” precisava copiar e fingir que entendia. Pois, na quadra me via obrigado a fazer parte de um jogo que me apontava como o mais fraco. Eu era o último a ser escolhido nos grupos porque nunca fui o escolhido, eu era o resto, a sobra. Fugia da bola e, tinha uma capacidade de empregar minha força nos lugares errados, porque sim, eu fazia gol contra!
Cresci fazendo gol contra mim mesmo!? Kkk. Cresci num sistema que sempre viu fraqueza em traços – físicos e de personalidade – como os meus. E eu era apenas uma criança que sentia um peso enorme de fazer parte de um time que não me integrava e que jogava contra mim!
O recreio que poderia ser a salvação era um misto de tranquilidade e pavor… Porque daria para ficar sozinho, contudo, minha sensibilidade denunciava o quanto eu parecia um estranho naquele lugar – e aquele lugar me parecia estranho. Essa percepção me machucava muito e dali emergiam conflitos que se digladiavam sob uma face angelical.
Uma vez, acho que a tia da merenda percebeu meu olhar perturbado diante do parque – aquele campo de batalha. E ela provocou, “porque você não vai lá brincar com seus amiguinhos?” Eu não soube responder, no entanto, MEU SILÊNCIO DEVIA GRITAR ALGO. Será que apenas eu que não via amiguinhos, que eu não via um parquinho.
Eu só via minha fragilidade diante do mundo.
Na escola, em toda minha infância, lembro que apenas 01 professora viu potência na minha introspecção. Infelizmente, não lembro o nome dela. Desconfio que seja Graça – embora, me parece um apelo aos céus para que as coisas façam algum sentido, mesmo que esotérico. Mas para mim, ela era a tia que me olhava! Com uma ternura e, eu não entendia como, porém sentia que ela me olhava sem pedir nada em troca. Ela tinha tanta paciência comigo e eu sentia que ela era a única que me olhava, de verdade. Isso me intrigava porque ela queria me acolher, e mesmo que com uma voz de baixo tom, rouca, suave e um jeito pacífico, me assustava ter a atenção. Eu não estava acostumado com gente me dando carinho, eu não entendia essa linguagem.
Deus sabe o quanto busquei nos livros didáticos aquilo que não entendia o que os professores falavam. Então, passei a gostar dos livros. Aprender a ler e escrever me salvou! E quem acha que expor as vulnerabilidades é uma fraqueza, vitimismo ou qualquer coisa do tipo, não sabe o que diz. Porque escrever sobre minhas vulnerabilidades me deu voz, a minha voz.
Porque escrever sobre as minhas vulnerabilidades me deu corpo, consciência de corpo. E a palavra que ficava presa na minha garganta e doía até o osso, e fazia minha alma gritar o desejo de querer o som da minha voz que eu emudecia de vergonha de ser eu. Ser eu doía demais! Eu não encontrava lugar para ser. Eu só me encontrava na minha solidão. Não sabia exatamente porque, mas parecia ser errado ser quem eu era, da forma que eu era, e eu era só uma criança que preferia brincar sozinho. Fui o menino bonzinho que não dava trabalho.
Então, hoje eu escuto a mesma alma que gritava pela minha voz, e hoje ela sussurra doce e vigorosa tão potente como um grito: mostra mesmo! Vive mesmo! Ama mesmo! Vai erra e acerta, acerta e erra porque tudo é caminho… Ninguém vai ditar quem você é e o que deve fazer para ser você só você sabe. E mesmo com boas intenções o outro não pode, e não deve caminhar por você!
Eu precisei de “mil anos” para tirar a palavra presa da minha garganta. Abraçar sem apego o conteúdo abstrato, recalcado da minha potente solidão… Pontilhar, colorir, desenhar, soletrar o meu nome, caçar palavras e descobrir as cruzadas, embaralhar as peças e entender as regras do jogo para dizer se eu quero jogar. Então eu corri porque amava a sensação de vento, de um corpo com possibilidades. Eu enfrentei o parquinho sozinho, e que coragem, e que beleza! Aprendi ao meu modo, a brincar da forma que eu podia, e não ter medo de quem se é! Ser quem se é, é a maior força do ser humano!
O que se é não tem palavra, no entanto, a palavra ajuda.